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| (inspiração :: Nelson Rodrigues) |
Uma noite
— Oi, pessoal!
— Oi, pai! — gritaram as crianças em uníssono.
O menino, o mais novo, sentava no sofá lendo um livro
dos Hardy Boys e a menina assistia a um programa qualquer na televisão. O pai
dá um beijo em cada criança e passa para a cozinha aonde, como sempre, a mãe
preparava o jantar. Diz outro
"oi", dá um beijo nela, tira o paletó e senta-se à mesa já arrumada.
— Tudo bem? — pergunta a esposa.
— Tudo. Foi um
dia muito cansativo. Cinco
reuniões. Uma loucura! E amanhã vou viajar para o Rio. Mais dois ou
três dias de reuniões!
— Você está sempre viajando. Sempre trabalhando. Férias que é bom, nada. Quando isso vai acabar? Quando NÓS vamos viajar?
— Eu preciso resolver certos problemas na firma e
então vamos. Vamos conhecer Brasília,
Manaus, que tal? As crianças nunca viajaram
de avião. Será o máximo!
— E temos dinheiro para isso?
— Não se preocupe com dinheiro. Tudo se arranja.
— Você sempre fala que "tudo se arranja",
mas depois as contas ficam sempre atrasadas.
Sempre recebendo avisos da escola, da luz, tudo.
— Já falei, não se preocupe.
Casados há mais de vinte anos, as conversas não
mudavam muito. O tempo dele era escasso,
pois além do trabalho ainda era pastor dos jovens e ajudava com a contabilidade
da igreja; um pilar de honestidade e da comunidade. Não tinha ou não fazia tempo para ela. Com isso, ela deixara de se cuidar e engordara,
sempre visitando médicos que diagnosticavam problemas com a tireoide e
receitavam infindáveis dietas, com as quais ela estava constantemente
preocupada.
— Crianças... lavar
as mãos e venham jantar — chamou o pai, ele próprio indo lavar as mãos.
— Ah, pai!
Agora?
— Sem dúvida!
Aqui em casa ceamos juntos, sem exceção.
Sentaram-se à mesa e fizeram a oração que sempre faziam
antes de qualquer refeição. Serviram-se
e começaram a comer.
— Amanhã vou viajar.
Vou ao Rio de Janeiro para umas reuniões e vou ficar uns dois ou três
dias.
— Posso ir também? — perguntou o garoto.
— Papai vai trabalhar.
Uma outra vez vamos todos, tá bom?
Durante o resto do jantar conversaram sobre coisas da
vida, do dia a dia: a escola, a tarde no
clube, as compras, a fila do banco, como estavam caras as coisas, o vestido que
a menina queria, o novo tênis que o garoto estava precisando, etc. Um momento familiar, agradável, de união e cumplicidade;
todos conectados pelo azul das veias, pelo ácido maestro.
Terminado o jantar, as mulheres lavavam a louça e
arrumavam a cozinha, enquanto os homens se retiravam para a sala a fim de
assistir à televisão, ler o jornal ou um livro ou qualquer outra coisa que lhes
convinham. Uma família de costumes
clássicos, tradicionalmente machista.
Tinham de levantar cedo no dia seguinte, portanto,
todos já estavam preparados para ir para a cama lá pelas dez horas. De pijama, dentes escovados, se beijaram ao
desejarem-se boa noite e foram deitar; as crianças compartilhavam um quarto e o
casal outro. Cada um pensava em suas
atividades do dia seguinte ou nos íntimos desejos que lhes aguçavam a alma.
O pai pensou no que faria de manhã quando acordasse,
preparando uma mala de viagem, e o que faria ao chegar no trabalho. Teria de organizar certas atividades e
estipular alguns marcos a serem atingidos pelos seus funcionários dentro dos
projetos que estavam em andamento. Não
teve muito tempo mais, pois seu dia realmente havia sido corrido e estava
cansado. Dormiu.
A menina pensava num garoto da escola e como ele haveria
de ser romântico quando finalmente lhe pedisse para dar uma volta ou ir ao
cinema. Ela iria, é claro, porém antes
hesitaria dois, três milésimos de segundo para valorizar sua decisão e criar
suspense na mente do pretendido. Pensou
na conversa que teriam e no andar pausado que faria durar o tempo que tinham
juntos, de mão dadas. Os pensamentos
tomaram mais vida, o romântico passeio transformou-se no mundo subconsciente
dos sonhos e ela adormeceu com um sorriso nos lábios.
O garoto continuava a ler uma das aventuras dos Hardy
Boys. Já lera umas dez histórias dos
irmãos Hardy, pois seu pai lhe trazia uma a cada duas semanas. Quando chegava em casa com uma nova edição,
arrancava das mãos do pai e imediatamente começava a ler. Gostava mais de Joe, o irmão mais novo e
impetuoso, porém também bastante inteligente, cujas observações ajudará na
solução de muitos dos mistérios que enfrentavam. Leu até que as letras começaram a
embaralhar. Chacoalhou a cabeça para
espantar o sono, continuou a ler até que as páginas embrumaram-se e ele se viu,
num espelho, seu cabelo liso, loiro, de olhos azuis, tudo que ele não tinha; seu
irmão, Frank, ao seu ombro, dizendo "Joe, temos que sair daqui!".
A mãe não estava com sono apesar de muito ter
trabalhado, preparando o café da manhã para todos, fazendo as compras do dia,
enfrentando a fila do banco, fazendo o almoço (apenas para ela e as crianças,
pois o marido nunca almoçava em casa), limpando toda a casa (com a ajuda insignificante
da filha), cômodo por cômodo, cantinho por cantinho, para deixá-la tinindo,
fazendo o jantar e depois limpando, sempre limpando. As preocupações sempre priorizavam-se sobre a
sua necessidade de descanso. Fossem elas
financeiras, de saúde (dela ou das crianças), domiciliar administrativas,
familiares, físicas ou amorosas, suas preocupações tomavam conta de sua
vida. Sentia-se só. Sentia uma tristeza obtusa que crescia a cada
dia. Vinte e sete anos de casados e já
não tinha mais o marido. Pelo menos não
no sentido abrangente da palavra. Sim,
ele estava ali ao seu lado, já dormindo, sem parecer guardar qualquer
preocupação. Ela se sentia feia, não
conseguia emagrecer. Talvez isso tivesse
causado o distanciamento do marido, que passava pouco tempo em casa. Às vezes viajava para outros estados a
trabalho, como faria amanhã, e ficava dias ou o fim de semana todo fora. No entanto, apesar de sempre atrasadas, ele
sempre pagava as contas e tinham dinheiro o bastante para alimentarem-se,
vestirem-se, divertirem-se (ao menos um pouco).
"Chega, já!" Tinha de
dormir. Fechou os olhos, concentrou-se,
tentando não pensar em nada. Assim ficou
por muito tempo até que, como uma hipnotista, exigiu que dormisse e dormiu.
O dia seguinte
Pela manhã, ela, a última a dormir, é primeira a
levantar-se. E a primeira ideia que vem a
sua cabeça é "Tudo de novo!".
Ela sabe que seu dia será basicamente igual a todos os outros. Enquanto, alvoroçados, o pai, o menino e a
menina realizam suas abluções e vestem-se para sair, ela prepara o café da
manhã para todos. Conforme vão ficando
prontos, aparecem à mesa para comer cereais, tomar café com leite ou leite
achocolatado, pão com manteiga, uma fruta, enfim, o que estivesse sobre a mesa
e escolhessem para dejejuar. Já
alimentados, um a um, se despediram com beijos uns nos outros e partiram para
suas atividades diárias, escola e trabalho.
Ela de volta à limpeza, sempre a limpeza.
O ônibus da escola, uma escola privada, chegou no
mesmo horário de sempre e o garoto o esperava já há cinco minutos. Era o primeiro a entrar e, portanto, tinha o
ônibus inteirinho para escolher onde sentar.
Geralmente sentava ao lado do motorista, pois simpatizava com ele e,
quando não tinha mais ninguém no ônibus, ele deixava o menino escutar umas fitas
de piadas antigas e às vezes "sujas", de Ari Toledo ou de Juca
Chaves. O motorista, o Seu Nelson, o
fazia sentir-se como gente grande. Na
escola, tudo era meio chato. As coisas
que explicavam eram às vezes interessantes, porém muito óbvias para serem
repetidas tantas vezes. Não via a hora
de voltar para casa e continuar a ler aquela nova aventura dos irmãos Hardy.
A menina andava até a escola, pois escolhera
permanecer na escola pública localizada a cinco quadras de onde moravam. Sua escolha talvez tivera base nas amizades
que forjou durante os anos que lá estudou ou talvez no garoto foco da fantasia
que tornou-se sonho na noite anterior. O
que ela sabia é que as horas que passava na escola eram as melhores horas de
seu dia. Não pelas aulas ou pelas incontáveis
maravilhas do mundo que tinham o prazer de conhecer, mas porque conversava com
suas amigas o tempo todo e tinha a oportunidade de ver e, por vezes, também
conversar ou brincar junto ou ao lado do garoto que ela considerava seu
"príncipe encantado". Afinal,
para que aprender essas coisas velhas e inúteis? Sabia também que detestava voltar para casa,
pois sua mãe sempre lhe pedia que ajudasse com a limpeza, sempre a
limpeza. Por agora, estava feliz, pois
se encontrava numa roda de amigas que incluía três meninos, um deles o seu
"Aquiles".
Depois de se despedir, das crianças e da esposa, pegou
sua pasta, a mala de viagem, as chaves, entrou no carro e partiu. Com o trânsito de São Paulo, terrível como
sempre, levaria pelo menos uma hora e vinte minutos, talvez mais, para chegar
ao trabalho. Uma loucura. Quanto tempo perdido! Chegou ao escritório e pediu à secretária que
não fosse interrompido por uma hora.
Revisou todos os projetos, as atividades de cada um e para quem deveriam
ser delegadas, as reuniões das quais iria participar, as agendas dessas
reuniões, enfim, tudo que o trabalho exigiria dele nos próximos três dias. Mais tarde, conferenciou com os integrantes
dos projetos, delegou as atividades, certificando-se de que as pessoas responsáveis
haviam entendido exatamente qual deveria ser o resultado esperado e as próximas
etapas a serem acionadas.
"Como o
tempo passa rápido!" pensou. Um dia
inteiro de trabalho já se havia passado.
Hora de ir embora.
Outra noite
Com sua pasta executiva e suas chaves, foi até o
carro, abriu-o, pegou a mala de viagem que ali deixara e foi até um ponto de
taxi. Decidira que seria melhor não
levar seu próprio carro. Entrou num dos
taxis que lá estavam e deu-lhe o endereço para onde ir.
— Chegamos — disse o motorista do taxi, depois de mais
de uma hora dirigindo.
Ele havia dormido no banco de trás. Abriu os olhos, verificou que estava na
frente da casa certa.
— Obrigado — retrucou, pagando o motorista. — Fique
com o troco.
Pegou sua pasta e sua mala e saiu do carro.
Entrou porta adentro gritando:
— Cheguei! A
janta tá pronta?
— Oi, pai! — disse a mais velha das três meninas que
estavam na sala.
— Onde está sua mãe? — perguntou, áspero.
— Na cozinha, fazendo seu jantar — respondeu a mais
nova.
— Já não disse que quando chego em casa não quero ver
vocês aqui? Vão para o quarto, já!
A mãe das meninas entra pela porta que dá para a
cozinha e diz:
— Para o quarto, meninas! Vamos!
— O que elas estão fazendo aqui? Vão arruinar minha janta! Já disse que quando venho aqui quero jantar, só
eu e você, não disse? E vá logo avisando
a elas, porque vou ficar aqui pelo menos duas noites!
— Sim, sim. Tudo
bem! Vamos, meninas! Está vendo?
Já estão indo. Não vão arruinar
nada. Como foi o seu dia?
— Eu falei pra usar anticoncepcional! Mas não!
Viu o que você fez? Viu no que
deu?
Três! Três! ...
Merda!